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SAUDADES DO PASSADO

“Passarinho estão cantando

Por ver o dia clarear

E você está sorrindo

Vendo os canário cantar

E nós estamos cantando

Sorrindo prá não chorar

Nesta gaiola de ouro

Nós vivemos a cantar…”

Com essa canção se iniciava o programa “Canário e Passarinho”, uma das muitas duplas sertanejas da era de ouro do rádio. A Cultura Caipira ainda era forte aqui no Sudeste, pois a lembrança do sertão ainda não era lembrança… era o nosso dia a dia. O gado ainda era tocado ao som do berrante pelas estradas poeirentas que cortavam as campinas. O cachorro trigueiro ainda era peça importante nessa lida, onde ainda não havia, ao menos em quantidade, os caminhões de transporte de boiada. As décadas de sessenta e setenta foram, de certa forma, o apagar das luzes dessa era que despertava mil fantasias nas crianças e trazia lembranças de infância dos mais velhos. O sertão, pouco a pouco, se transformava em cidade, expulsando de seu seio toda vida selvagem que até então ali existia em abundância. Florestas eram derrubadas, para em seu lugar levantar prédios para a nova era que se anunciava…

Os últimos duelos de brincadeira eram travados nas ruas empoeiradas, onde os garotos imitavam seus heróis do gibi ou do rádio… a televisão ainda não havia entrado em todeos os lares como nos dias de hoje, em parte porque não havia eletricidade disponível para todos, em parte porque realmente era um luxo do qual poucos podiam desfrutar. Revolveres de espoleta eram os brinquedos favoritos da garotada, junto com o cavalinho de pau… na maioria das vezes, uma vassoura velha que, na fantasia das crianças, tornava-se um lindo corcel… geralmente o nomeavam de “Corisco”, a fiel montaria de Juvêncio, um dos heróis da petizada…

Finais de semana eram regados a cachaça e modas de viola… era quando os pais de família se reuniam e aqueles que sabiam arranhar um instrumento se juntavam com outros e começavam a cantoria, onde desfilavam canções de sua infância e juventude. Canções originalmente interpretadas por Tonico e Tinoco, “a dupla coração do Brasil”, eram sem dúvida as favoritas. Primeiro porque testavam o seu poderio de voz… não era qualquer um que alcançava as notas dessa dupla tão querida por todos… e além disso, essa era uma dupla eclética, que tinha em seu repertório vários tipos de canção… desde a toada, passando pelo xote, rasqueado, valsa… havia uma variedade de ritmos, para cada um tocar de acordo com seu gosto…

As mulheres quase não participavam ativamente desses encontros musicais. As mulheres se incumbiam de preparar os comes e bebes para o evento e ficavam assistindo a performance dos artistas de final de semana. Não era permitido a ninguém interferir na apresentação dos cantores, sob risco destes se perderem tanto no ritmo do instrumento quanto na letra da canção executada naquele momento…

Para as crianças tudo era festa… sob a luz do lampião ficavam a brincar, não junto dos mais velhos, é claro… mas se juntavam e continuavam com os folguedos de seu dia a dia…

Normalmente se usava um casal de instrumentos… viola e violão. A viola era considerada, por esses artistas amadores, o instrumento principal, a alma de suas apresentações. O violão servia como base para ela, sendo a base que dava suporte para os virtuosismos do violeiro, segurando os ponteados que embelezavam a apresentação. Para demonstrar o quanto eram bons em seus instrumentos, os tocadores de viola tinham preferência em executar principalmente as “modas de viola”, onde o violão praticamente desaparecia, já que essas canções eram acompanhadas pelos ponteios, voleios feitos pelo violeiro…

De vez em quando a dupla em foco executava uma canção rancheira, influencia de nossos hermanos de outras paragens… ritmos de várias partes do mundo, desde o velho continente até o novo, eram cantados por todos. E, não raro, versões de musicas do outras paragens eram executadas por esses matutos, que não tinham a menor ideia da origem de sua canção favorita… um exemplo é a valsa italiana “Vienne sul mare”, que através de uma adaptação de José Duduca de Morais, virou “Minas Gerais” e tornou-se um hino conhecido na voz de Tonico e Tinoco… poucos saberiam falar sobre a origem da maioria das canções favoritas dessa época. Até mesmo poemas de nossos escritores viravam canções, sempre executadas com maestria por esses artistas… o “Gondoleiro do Amor”, poema de Castro Alves, musicado por Salvador Fábregas, também foi imortalizado na voz dessa dupla que foi, sem dúvida, o maior ícone da música sertaneja…

Sim, o mundo mudou muito desse tempo para cá. Nossas tradições foram se perdendo aos poucos e hoje quase nada resta da Cultura Sudestina. Fomos sufocados por outras culturas, tanto de outras regiões do país quanto vindas do exterior…

Vou fechar essa crônica com os versos finais da canção de Índio Vago e Nonô Basílio, “Mágoa de Boiadeiro”, que ilustra bem o final dessa era…

“Não sou poeta, sou apenas um caipira

E o tema que me inspira, é a vida de peão

Quase chorando, imbuído nessa mágoa

Rabisquei essas palavras e saiu essa canção

Canção que fala da saudade das pousadas

Que já fiz com a peonada, junto ao fogo de um galpão

Saudade louca de ouvir o som manhoso

De um berrante preguiçoso nos confins do meu sertão…”

Tania Miranda  –   Brasil  –  16/09/2025

Tania Miranda
Tania Miranda

Trabalho como Agente de Organização Escolar (Secretaria de Educação do Estado de São Paulo) embora no momento esteja prestando serviço junto ao TRE, no Cartório Eleitoral como Auxiliar Requisitada. Gosto de escrever, tenho dois livros publicados, "Tirésias, a dualidade da alma humana"(autobiografia), pela Editora Verso e Prosa e "A volta do Justiceiro", romance explorando o folclore brasileiro, publicado pela UICLAP. Publico crônicas diariamente em alguns grupos, meu perfil e meu blog... (taniamirandablog.blogspot .com)... sou casada, tenho quatro filhos e dois netos, sendo que minha neta mora comigo desde os três meses de idade...

Tania Miranda

Trabalho como Agente de Organização Escolar (Secretaria de Educação do Estado de São Paulo) embora no momento esteja prestando serviço junto ao TRE, no Cartório Eleitoral como Auxiliar Requisitada. Gosto de escrever, tenho dois livros publicados, "Tirésias, a dualidade da alma humana"(autobiografia), pela Editora Verso e Prosa e "A volta do Justiceiro", romance explorando o folclore brasileiro, publicado pela UICLAP. Publico crônicas diariamente em alguns grupos, meu perfil e meu blog... (taniamirandablog.blogspot .com)... sou casada, tenho quatro filhos e dois netos, sendo que minha neta mora comigo desde os três meses de idade...

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